Por que os poetas escrevem

A princípio escrevia simplesmente
Para entreter o espírito…. Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
Do que por uma propulsão consciente.


Trecho de “Por que escrevo? “, de Augusto dos Anjos


Impulso, entretenimento – poetry had value as recreation rather than as revelation – consciência social… afinal, por que os poetas escrevem? Quando buscamos as explicações dos próprios artífices sobre o tema, percebemos que as falas são bastante imprecisas e fugidias. Não é como se eles simplesmente não soubessem a resposta para essa pergunta simples, mas o próprio questionamento, na medida em que exige uma dose indesejada de autoconsciência, parece estar deslocado do universo mesmo da composição. No entanto, essa dúvida – que pode, como todas as dúvidas, soar tola ou vazia de sentido – nos ajuda a descortinar as razões de ser do poema.

Quando criança, Rimbaud compôs diversos poemas latinos para cumprir atividades escolares. Ver Erat, a mais interessante dessas obras primeiras, narra a aventura de um jovem que tenta fugir do regime tutelar do estudo e se deita perto de um verdejante rio. De repente, é abatido por uma visão: Febo aparece e grava em letras flamejantes: TU SERÁS POETA. A cena imaginada pelo poeta francês tem dois detalhes interessantíssimos: guarda semelhança com a iluminação súbita de santos e místicos orientais e também antecipa a famosa Carta do Vidente que definirá o lugar transmutativo do poema na vida breve de Rimbaud: “a velharia poética entrava em boa parte na minha alquimia do verbo”.


Antes de partir para o exílio mais estranho da história da literatura, o jovem francês declarou ainda que o poeta verdadeiro é um ladrão de fogo e inscreveu a atividade poética naquela antiquíssima linhagem que tem em Prometeu seu patriarca. Qual seja a concepção final desse místico em estado selvagem que foi Rimbaud, a verdade é que o seu mutismo posterior nunca será explicado: cessou, afinal, a atividade divina? Ele perdeu o dom da vidência? Deixou de sonhar ou foi aniquilado pelo próprio fogo que havia raptado?


Ao menos simbolicamente, o gênio rimbaudiano previa que seu trabalho poético/profético cessaria envolto em uma bruma muito semelhante àquela que enredou o Rei Arthur; escreveu, então, o poema Barco Ébrio enquanto meditava em símbolos alquímicos e suas últimas palavras, segundo os biógrafos, foram: “me digam a que horas vão me levar para o navio”.
Partiu o vate da mobilidade máxima para a imobilidade absoluta e sua fuga nos indaga por que, afinal, escrevem os poetas. Longe da concepção sacra sobre o papel do poema, mora uma ideia de que a razão do poeta é o próprio trabalho. Daí os versos irônicos de Carlos Drummond de Andrade em Oficina Irritada:

Eu quero compor um soneto duro
Como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Seco, abafado, difícil de ler.


Quero que meu soneto, no futuro,
Não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
Ao mesmo tempo saiba ser, não ser.


Esse meu verbo antipático e impuro
Há de pungir, há de fazer sofrer,
Tendão de vênus sob o pedicuro.


Ninguém o lembrará: tiro no muro,
Cão mijando no caos, enquanto arcturo,
Claro enigma, se deixa surpreender.


Em um poema inflamado, outro francês, Victor Hugo, usa uma dicção muito próxima daquela esboçada na Carta do Vidente: Peuples! Écoutez le poète! Ecoutez le rêveur sacré! Dans votre nuit, sans lui complète, Lui seul a le front éclairé (“Povos! Escutai o poeta! Escutai o sonhador sagrado! Na vossa noite, sem ele completa, ele apenas tem a iluminada fronte! ”).

Contudo, há nessas linhas um elemento ainda não pensado: a quem o soneto duro fará sofrer? Para quem está dirigida essa maquinação doentia operada na oficina? Drummond não diz, mas está subentendido: chamar o poema de tarefa, e não de destino ou vocação, é destituí-lo de seu caráter sagrado/mágico. Afinal, toda tarefa precisa de um encarregado, alguém que possa executar a função. Dessa condição surge o operário da palavra, o Bartleby lírico, e com ele o fardo da composição que opera em suas próprias nuvens semânticas: desgaste, suor, labuta, mecânica. Ao contrário da Todesfuge de Celan, o poema mecânico, quase sempre representado pelo poeta parnasiano fazendo malabarismos com o dicionário, é um mergulho na morte e na cisão. Eliot, mesmo tendo sido bancário e levado uma vida rotineira, optou por singrar outros universos com seu Waste Land: a rotina e o tédio estão no poema ou no próprio poeta que o executa? Por acaso já escreveram os operários?

A vocação, por outro lado, mistifica seus eleitos. Os autores videntes – Rimbaud, Blake, Nerval, etc. – se tornam os profetas de uma religião sem Deus e pairam na bruma de um segredo só comunicável sob certas cifras. Mallarmé escreveu pouco, mas seus alunos e admiradores diziam que havia algo naquele estranho professor que ficava sentado pelos cantos baforando e murmurando imprecações e desígnios pítios.
Há também o caso trágico de poetas que não foram considerados úteis o suficiente e que, portanto, não passavam de parasitas da pátria. O exemplo mais famoso é o do escritor russo Joseph Brodsky. Em 1963, um ainda jovem Brodsky foi levado ao tribunal para prestar alguns esclarecimentos sobre as suas estranhas atividades. Abaixo, transcrevo um pequeno trecho do delirante interrogatório:

Juiz: De modo geral, qual é a sua especialidade?
Brodsky: Eu sou poeta. Poeta-tradutor.
J.: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os poetas?
B.: Ninguém. (Sem qualquer desafio) E quem me classificou no gênero humano?
J.: E o senhor estudou com tal objetivo?
B.: Qual objetivo?
J.: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se preparar… para aprender…
B.: Eu não pensava que seria possível aprender isso.
J.: Como se tornar poeta, então?
B.: Penso que… (Desconcertado) … é um dom de Deus…
Quando o público evacuava a sala, nós percebemos uma multidão, sobretudo jovens, nos corredores e escadas.
J.: Quanta gente! Não imaginei que haveria tamanho agrupamento.
Alguém na multidão: Não é todo dia que se julga um poeta.

E o que poderia dizer Brodsky diante de perguntas tão disparatadas? Objetivos, metas, como aprendeu? A oficina também tem os seus censores de prontidão.

Antônio Brasileiro, pintor e ensaísta, escreveu um pequeno livro dedicado a vasculhar a utilidade, ou inutilidade, última da poesia. Segundo ele, a investigação sobre as razões dos poetas encontra uma boa resposta no trabalho lírico e aforístico de Valéry. Sentenciando o poema como festa do intelecto, Paul Valéry, mesmo tendo sido discípulo de Mallarmé, reagirá contra as tendências mistificadoras e anunciará uma arte lírica intencional, medida e protegida contra a humilhação das musas. No entanto, as propostas valeryanas de intenção e trabalho estão muito distantes daquelas do operário. Para ele, a produção, o exercício e a investigação rigorosa são, em si, os fins do poema e as razões substanciais de seus executores:


Mais uma vez confesso que o trabalho me interessa infinitamente mais que o produto do trabalho. Não amo senão o trabalho do trabalho: os começos me entendiam e suspeito ser perfectível tudo aquilo que chega de uma vez.”

Buscar, então, a motivação dos poetas em algo além da própria atividade de escrever é criar uma ontologia desnecessária? É edulcorar uma tarefa rigorosa que presenteia a observação de suas regras e engenhos? Fatalmente, o labor pelo labor desagua no discurso de Celan, em um momento de hesitação sobre o papel salvífico de sua arte, ao receber o prêmio George Büchner: a poesia, senhoras e senhores, esse discurso infinito, feito de pura mortalidade e inútil…

Mas se é apenas pela tautologia existencial e extensão de seus próprios domínios cognitivos, há ainda uma esperança de salvação – intelectual, anímica ou mental – pelo poema? Matilde Campilho anuncia que a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto, e isto, segundo ela, já é o suficiente.
Sendo este um exercício antes interrogativo do que peremptório, poderíamos estender a pergunta norteadora aos poetas mágicos, loucos, divinos, possuídos, incompreendidos, solitários ou engajados. Que fazem em um mundo nas raias da tecnocracia absoluta? Em quais poderes confiam para continuar a construir mundos e linguagens? Por que não desistem, de uma vez por todas, de seu ofício ou arte taciturna?
A sentença de Antônio Pina desembola, de maneira pouca esperançosa, a linha que iniciamos:

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar?



REFERÊNCIAS

BRASILEIRO, Antônio. Da Inutilidade da Poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978.
RIMBAUD, Arthur. Prosa poética. Tradução: Ivo Barroso. 2ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.

O Eterno Ariano Suassuna

Não lamentei a morte de nenhuma pessoa pública esse ano, mas o falecimento de Ariano Suassuna me deixou muito triste.

Fui educado lendo Câmara Cascudo, Freyre, Mário de Andrade e Ariano e permaneci com a promessa de que havia um riquíssimo imaginário brasileiro, ibérico e ameríndio, escondido na literatura, nas loas e nas coisas que o povo diz.

Foi também o mestre paraibano que me ensinou a gostar de música brasileira: passei a infância ouvindo os discos do Quinteto Armorial e ainda trago na memória a estética do Sertão.É triste pensar que toda uma geração de intelectuais, e eruditos, está morrendo e que não há renovação de idéias em nosso país.

Obrigado por tudo, Ariano.

Neidan- Apreciações sobre a Alquimia Chinesa

“O Tao gerou o Um.

O Um gerou o Dois.

O Dois gerou o Três.

O Três gerou todas as coisas”.

 

I-Precauções

Véu sobre véu. Escrever sobre as religiões orientais, desde um ponto de vista esotérico, é sempre uma tarefa temerária. Primeiramente, porque todas elas, ao menos aquelas ancoradas nos troncos celestiais, são dotadas de um certo “espírito” que nos escapa. Essa ideia está exposta de maneira detalhada nos textos de René Guénon: segundo ele, o Oriente ainda preserva, ainda que nos recônditos monásticos ou na ritualística de ordens secretas e tríades, as filigranas espirituais da Tradição[1]. Em segundo lugar, há um desacordo generalizado- principalmente entre antropólogos e sociológicos- sobre o que, de fato, vem a ser uma religião: eram religiões as antigas práticas divinatórias e oraculares da Dinastia Shang? Até que ponto podemos falar em um “confucionismo religioso”? Como descrever, então, atividades de natureza religiosa que fogem aos ditames canônicos e aos pressupostos adotados no estudo das taxinomias espirituais? A terceira dificuldade que se impõe, intransponível e tóxica, é aquela que deriva das falsificações pelas quais as doutrinas orientais passaram no Ocidente: gurus autoproclamados, ordens esdruxulas com apelos orientalistas, distorções, inclusive historiográficas, causadas pela Sociedade Teosófica…  Desse modo, o estudo do esoterismo do Oriente é um ardiloso e cheio de miragens.

Como se não fossem suficientes as dificuldades expostas- que se referem aos fenômenos religiosos exotéricos ou esotérico- ainda é preciso levar em conta o fato de que os textos alquímicos, do Oriente ou do Ocidente, sempre foram redigidos para aqueles que conhecem as chaves interpretativas. Parece paradoxal, mas é a Alquimia sempre foi um conhecimento para aqueles “que sabem”.

De todo modo, se não podemos capturar certas características que nos fogem por conta das dificuldades mencionadas, é preciso lembrar também que o Espírito não tem nacionalidade, cultura, pátria, nome ou barreiras que o restrinjam: sopra onde quer e sussurra nos ouvidos daqueles que o buscam na escuridão dos bosques.

 

II- Princípios

“Conheço bem esta fórmula secreta maravilhosa e verdadeira, economizadora e curadora das forças vitais, isso e nada mais. Todo o poder reside no sêmen (jing), na respiração (qi), e no espírito (shen); guardai-os com cuidado, de forma segura, para que não haja um vazamento. Para que não haja um vazamento! Mantenha-os dentro do corpo!”

Luz sobre luz. A Alquimia é ciência régia, mas seus sacerdotes não têm castelos, exércitos ou diademas. É o Homem-Rei, chen-jen, aquele que conheceu o mistério da Origem. Daí que a Alquimia seja também a “ciência dos princípios”, pois somente aquele que conheceu o princípio conhecerá o fim da obra- Finis Ab Origine Pendet.

Em toda parte, a ciência alquímica operou em dois aspectos: interior e exterior. Na China, essa divisão ficou conhecida como Neidan (alquimia Interior) e Waidan (alquimia exterior) e provocou as tradicionais celeumas entre seus praticantes: os praticantes da alquimia exterior queriam obter substâncias mais finas através das grosseiras e encontrar a fórmula da imortalidade no espelho da natureza. Os praticantes da Neidan, por sua vez, enxergavam os adeptos da Waidan como “sopradores”, “queimadores de carvão” e consideravam um desperdício a vida preenchida pela busca nas trevas exteriores. [2] No entanto, e por mais que muitos adeptos tenham se deixado levar por essas disputas intestinas, a divisão entre interior/exterior- assim como aquela de baixa/alta magia- só tem validade desde um ponto de vista intelectual. Na visão da Unidade, as dualidades são dirimidas na singularidade e já não há matéria ou espírito; na máxima dos sufis: “nossos corpos são nossos espíritos e nossos espíritos são nossos corpos”.

O fato é que a Neidan, alquimia interior do Tao, nunca foi uma corrente majoritária na China Antiga. Existem muitas tentativas de criar um calendário historiográfico para o surgimento das práticas alquímicas, mas a verdade é que para os chineses a história sempre esteve numa posição de subordinação em relação ao mito (e é por isso que muitos povos ocidentais acusam a China de ser um país com “péssima memória”). Poderíamos remontar a criação da tradição alquímica chinesa ao civilizador Fu Xi ou mesmo ao importantíssimo “Imperador Amarelo”. Contudo, e tendo em vista o escopo desse artigo, devemos considerar, como fizeram muitos autores do Ocidente e do Oriente, que a alquimia interior do Tao tem origem com Lao Zi. [3]

“As cinco cores cegam os olhos/Os cinco tons ensurdecem os ouvidos/os cinco sabores obstruem o paladar/correr e caçar enlouquecem a mente/os bens exóticos tentam os homens para o mal. Portanto, o Sábio atende ao ventre, não olho. Prefere o que há em seu interior, não o de fora”.

Vejamos o que nos diz Lao Zi: tudo aquilo que está no mundo das “dez mil coisas”- cores, tons e sabores- são, na verdade, obstruções para os sentidos internos e para a experiência daquilo que está além dos sentidos. No entanto, a alusão ao ventre é a porta para a compreensão: é na região do ventre que está localizado o Dantian, o campo do cinábrio. É na região ventral que se realiza o principal processo da alquimia interior taoísta: a inversão dos elementos de fogo e água e “cozimento” lento das três substâncias formadoras: Jing, Qi e Shen.

Longe de serem três elementos díspares, Jing, Qi e Shen representam a mesma substância refinada em diferentes aspectos. Jing normalmente está associado aos elementos grosseiros da matéria Una: sêmen, esperma, materialização, a obra convertida em terra. Qi está associado à respiração e é, na medicina taoísta, o elemento curativo intrínseco ao ser humano. Shen é o puro espírito, a substância Una quando em sua primeira manifestação e depois de refinada pelo processo da alquimia interior. Lianshen huanxu, considerada a barreira final do processo de cultivo interior, significa Refinar o Espírito e Retornar o Vazio. O Vazio é o Tao (ainda que do Tao não possa dizer nada ou a ele dar nomes); mas não é o vazio niilista da filosofia ocidental: o Tao é a grande inundação, pleno até as bordas, inesgotável como um fole gerando todas as coisas. Assim que as três substâncias se colocam em seus “lugares”, a energia Yin, terrena e atrativa, perde força e a graça e a luminosidade de Yang se sobrepujam no resplendor do Homem Sagrado.

É o nascimento do “embrião ”.

III- A meta cósmica

Espírito sobre matéria. A graça final da alquimia interior do Tao, portanto, é a imortalidade, além dos nove céus e da transição dos mundos—o elixir dourado. Os três elementos da cosmovisão taoísta- Céu, Homem e Terra- trabalham juntos na operação mística da Neidan para que seja restaurada não só a terra e seus males, mas todo o ciclo cósmico do vir-a-ser e do mundo dos desejos. Assim, Lao Zi nos alerta que “Enquanto nos concentramos no ser, é no não-ser que está a utilidade”. A roda do vazio. Enquanto o processo de aprendizado é normalmente visto como um acúmulo contínuo de saberes complexos, códigos e linguagens, o aprendizado do Tao é a diminuição constante: e aí está seu brilho que reluz sem precisar ser notado.

Aparentemente, a alquimia interior do Tao foi soterrada por outras correntes religiosas e místicas que aportaram na China: o budismo, o cristianismo, o crescimento das religiões exóticas ao espírito taoísta. Entretanto, cumpre notar que a própria ideia de desaparecimento de um rito, dos deuses ou de uma prática esotérica sempre foi estranha ao espírito dos sábios chineses: como aquilo que eterno e está enraizado no Ser pode desaparecer sem deixar vestígios?

Cabe ao adepto, portanto, vencer a atmosfera tóxica- o pesadelo cósmico- do huanshen, corpo ilusório, e retornar ao Espírito original, ao estado em que a face primeira da Natureza ainda não havia dado o Sopro Gerador. Para tanto, executa a alquimia interior do Tao com o mais simples dos ensinamentos secretos: sentar e esquecer.

Notas:

[1] Para conhecer mais sobre o assunto: René Guénon: A Grande Tríade. No Brasil, há uma edição publicada pela editora Pensamento.

[2] A mesma querela se deu, de maneira muito mais evidente, na Alquimia Ocidental. Basta lembrar, para ficar num exemplo mais recente, das críticas de Eugene Canseliet a René Guénon sobre as falácias de uma alquimia “puramente espiritual”.

[3] As transcrições de nomes e termos chineses não seguem nenhum padrão específico. De um modo geral, optei por utilizar as formas mais conhecidas em textos publicados Brasil. É importante ressaltar, no entanto, que mesmo a forma “Tao” não é consensual nas línguas ocidentais e alguns orientalistas renomados utilizam “Dao” e “Daoísmo” em seu lugar. A iniciação taoísta que recebi, por sua vez, foi conduzida por sacerdotes de Taiwan e o termo utilizado para explicar o conteúdo metafísico da iniciação sempre foi “Tao”.

Referências bibliográficas

Cleary, Thomas, tr. 1991. Wen-tzu: Understanding the Mysteries, Further Teachings of Lao-tzu. Shambhala.

MU, Wang . Foundations of Internal Alchemy. [S.l.]: Golden Elixir Press, 2011. 144 p.

Mair, Victor H. 1990. Tao Te Ching: The Classic Book of Integrity and the Way, by Lao Tzu; an entirely new translation based on the recently discovered Ma-wang-tui manuscripts. Bantam Books.

LIU, Pai Lin; Saúde e Longevidade; São Paulo (Brasil); Espaço Luz; 4. ed; 2002.

 

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Alquimia interior do Tao

 

História intempestiva

Um fenômeno histórico, conhecido pura e completamente e dissolvido em um fenômeno do conhecimento, está morto para aquele que o concebeu: pois ele reconheceu nele a ilusão, a injustiça, a paixão cega e em geral todo o horizonte profano envolto na obscuridade desse fenômeno, e, ao mesmo tempo, justamente aí o poder seu poder histórico. Para o que detém o saber, este poder tornou-se impotente – mas talvez ainda não para o vivente.”

Nietzsche, Considerações Intempestivas

Uma compreensão mais ampla do termo “contemporaneidade”- expressão bastante difusa e polissêmica- exige também um entendimento apurado do que vem a ser a “história”. A tendência do senso comum é igualar a história ao passado e ao desvelamento linear dos fatos; contudo, essa é uma acepção que deixa de lado diversos fenômenos importantes e não deslinda determinadas experiências irrompidas no âmago dos acontecimentos.

Reinhart Koselleck, afamado historiador alemão, contribuiu de forma decisiva para que o horizonte epistemológico da disciplina histórica se ampliasse. Segundo ele, existem certas estruturas de repetição que não se esgotam nas condições determinísticas da singularidade. Desse modo, as repetibilidades do acontecer histórico se perpetuam em virtude de alguns estratos do tempo, na medida em que essas camadas atravessam e sustentam a produção de novidades factuais. O raciocínio koselleckiano nos leva a buscar uma perspectiva dos conceitos, de que como eles vêm a ser e não se onde vieram, e a matizar a noção de que ser contemporâneo, ou habitar a contemporaneidade, é simplesmente viver no presente. Será possível encontrar- hic et nunc– a ruptura que Giorgio Agamben denominou o arcaísmo do presente? Que esse arcaísmo seja também uma fratura, deriva de um sintoma específico de nossa era?

O cerne do ethos contemporâneos, portanto, pode ser pensado como a jornada de deslocamento e distância para perceber que modo as luzes da modernidade ressaltam os estratos fecundos da escuridão.

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Reinhart Koselleck

Nós estamos jogando Poker, Adenor!

Num dos episódios mais interessantes de Star Trek, a Enterprise está sendo ameaçada por uma tripulação cuja inteligência estratégica parece operar fora dos limites da compreensão imediata. Spock, que é metade humano e só herdou uma parcela de nossos problemas emocionais, tenta aplicar os princípios do xadrez para entender as motivações do adversário e conseguir antecipar movimentos. De forma muito didática, ele explica ao Capitão Kirk a estrutura linear de seu pensamento e dá conselhos sobre as próximas investidas defensivas. As narrativas de Spock, deduções das deduções ao modo de Sherlock Holmes, impressionam pela perspicácia, mas as ações falham miseravelmente e a situação se encaminha para um xeque-mate.
Intrigado com o fracasso, o Vulcano pergunta ao Capitão:

– O que deu errado, James?
-Eles não estão jogando xadrez, Spock… estão jogando poker!

Lembrei-me desse episódio enquanto assistia à entrevista de Tite após a derrota do Brasil. O técnico brasileiro usava termos como “performance”, “desempenho” e “competência” para tentar explicar o sucesso dos adversários. Adenor é um profissional bastante sério, trabalha com dedicação, tem princípios e age norteado por eles. No entanto, sua ênfase nos termos mecânicos demonstra uma fraqueza: Tite não aprendeu a lidar com a propensão das coisas.

De acordo com os chineses, mestres insuperáveis da arte estratégica, as manobras de vitória são predeterminadas quando o estrategista explora a seu favor, e com o máximo efeito, as condições encontradas. Esse dinamismo faz com que o triunfo pareça natural, espontâneo, embora tenha sido meticulosamente visto na aparição das virtudes internas e externas. Uma teoria geral da eficácia é capaz de sublimar o campo restrito da performance, já que o desempenho humano é contingenciado por fatores incontroláveis.

E então o poker. Embora os grandes mestres do xadrez também tenham lá suas doses de imprevisibilidade absoluta, e o caso mais emblemático é a intimidação psicológica e gestual de Bob Fischer, podemos pensar a dinâmica do xadrez nos modelos de uma estrutura probabilística, matemática, com pequenas margens de erro ou inovações fabulosas. Já o jogo de poker é, por sua própria natureza, dominado pela arte da dissimulação, das nuvens de fumaça e dos micro-gestos. Quer dizer, não é preciso ter a melhor “competência”, mas é necessário fingi-la com perfeição (o que talvez, paradoxalmente, seja o conceito de competência nesse caso).

Segundo Zé Miguel Wisnik, os Estados Unidos nunca conseguiram dominar o soccer precisamente porque estão fechados em seus próprios circuitos de desempenho. Já o futebol, principalmente o brasileiro, sempre esteve intimamente ligado ao improviso e ao inesperado. Isso não significa despreparo ou inferioridade. Na verdade, essas são características inatas ao nosso modelo de pensamento que podem nos dar a vantagem competitiva quando as outras qualidades são igualadas por preparo físico, análise de dados e mapas de calor.

É bem verdade que os passes de Coutinho para gol e os dribles curtos de Neymar ainda nos lembram dessas virtudes ocultas, mas o fato é que Tite não estava preparado para dissimular, improvisar e surpreende; e seu momento mais espontâneo na Copa foi a homérica queda de bunda na comemoração do gol. O técnico acabou sendo pego de ceroula com a solidez de seus conceitos e naufragou pensando “onde foi que erramos, Capitão? “.

Teremos que aguardar mais quatro anos e meio para ver se Adenor consegue captar a mensagem galáctica: nós estamos jogando poker.

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Improvisação pura

Laurence Sterne: o arauto do caos

O mais maleável dos autores, ele também transmite ao seu leitor um tanto dessa maleabilidade. Sim, ele troca inadvertidamente os papéis, e logo é tanto leitor como autor; seu livro semelha um espetáculo dentro do espetáculo, um público teatral ante um outro público teatral. Há que se render incondicionalmente ao capricho de Sterne – podendo-se esperar que ele será clemente, bastante clemente. ”

— Nietzsche, “Humano, demasiado humano”

Alex Sugamosto

Especial para o Jornal Opção

Em 1759, um clérigo irlandês chamado Laurence Sterne lançava o primeiro volume daquele que seria considerado por muitos intelectuais e artistas como um dos mais brilhantes e inovadores romances já publicados: “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”. Admirado por Nietzsche — que não era lá um sujeito de elogiar muita gente — e Stendhal, Laurence Sterne é conhecido no Brasil por ter sido mencionado no célebre prólogo da quarta edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Segundo Machado de Assis, Sterne influenciou o seu Brás Cubas no uso da forma livre e na temática das viagens. Certamente, Machado se referia ao livro “Uma viagem sentimental” em que o autor irlandês narra viagens — reais e imaginárias — pela França e pela Itália. Livro divertidíssimo e desafiador, “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” foi traduzido no Brasil por José Paulo Paes e lançado pela Companhia das Letras (o volume, no entanto, está esgotado há muito tempo e o exemplar usado é vendido a preços altíssimos por livreiros).

Mas, afinal, qual é a grande inovação de Laurence Sterne e do que se trata esse romance praticamente desconhecido no Brasil? O enredo elementar do livro é bastante simples: um homem chamado Tristram Shandy narra suas memórias e a origem dos modos e dos haveres, intelectuais e materiais, que adquiriu ao longo da vida. No entanto, essa intenção narrativa é desmontada logo nas primeiras páginas do “Shandy”: o narrador inicia sua prosa com uma série de peripécias que vão desmontando a estrutura linear do romance, a organização lógica das memórias e a própria tessitura do sujeito que as enuncia. Não por menos, Laurence Sterne parece ter influenciado, direta ou indiretamente, os experimentos de Joyce e Beckett– autores que, coincidentemente, também são irlandeses.

As artimanhas de Sterne, entretanto, não se restringem apenas aos usos da estrutura do romance. Durante o livro, deparamos como páginas em branco, trechos aleatórios, parágrafos riscados… segundo o próprio Laurence Sterne, um dos capítulos foi suprimido por ser bom demais, o que acabaria prejudicando o equilíbrio geral da obra.

No cerne do “Tristam Shandy”, parece habitar aquela centelha que levou Rabelais a parodiar todos os elementos respeitáveis da alta cultura de seu tempo. O próprio título da obra, “A Vida e as Opiniões”, é, na verdade, uma troça com uma certa categoria de livros mui grandiloquentes que eram publicados à época com intuito de disseminar determinadas filosofias morais entre a população letrada. O sucesso absoluto do livro de Sterne pode ser explicado pela nossa necessidade inerente de ver o mundo às avessas, de liberar, para usar uma expressão do professor Luiz Costa Lima, o imaginário de suas amarras morais e temporais. Deixemos que o próprio autor explique seus ensejos:

 “(…) portanto, meu caro amigo e companheiro, se me julgardes algo parcimonioso na narrativa dos meus primórdios,  tende paciência comigo, e deixa-me prosseguir e contar a história à minha maneira: ou, se eu parecer aqui e ali vadiar pelo caminho, ou, por vezes, enfiar na cabeça um chapéu de doido com sinos e tudo, durante um ou dois momentos de nossa jornada, não fujais, mas cortesmente dai-me o crédito de um pouco mais de sabedoria do que a aparentada pelo meu aspecto exterior; e à medida que formos adiante, aos solavancos, ride comigo ou de mim, em suma, fazei o que quiserdes, mas não percais as estribeiras.

 

A ideia de civilização brasileira: influências e linhas de força.

A compreensão do Brasil como “espaço multipolar”- mais de direito do que de fato – deve se dar a partir de determinados princípios balizadores na terminologia aplicada. Por exemplo, se quisermos provar que somos uma “civilização jovem”, hipótese que já veio à baila em diversas ocasiões nos círculos intelectuais nacionais, teríamos que compreender, primeiramente, em que termos é possível falar em civilização brasileira. O apontamento detalhado de tais princípios, entretanto, geraria extensas diatribes intelectuais, seguidas das conhecidas réplicas retóricas que são, invariavelmente, coloridas pelas ideologias dos debatedores. Isso posto, partimos de um conceito norteador bastante elementar: o Brasil possui um projeto de civilização singular que ainda não foi medido, e tampouco analisado, com as ferramentas antropológicas e historiográficas consagradas pelo Ocidente (supondo, é claro, que elas serão satisfatórias e suficientes para tal empreitada). Para dizer mais precisamente, é necessário questionar, com base em instrumentos metodológicos apropriados ao nosso caso, a validade da idéia de um “Brasil Ocidental”, já que os próprios intelectuais ocidentais nos enxergam como um povo bastante complexo. Assim, uma sociologia antropológica legitimamente nacional deve saber, para dizer como Alain Touraine, “pensar outramente”.

No que tange ao ideal de um “Brasil Ocidental”, é preciso recordar do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, figura importantíssima nos estudos culturais do país, e de sua definição da situação epistemológica basilar para o entendimento dos chamados “Povos Novos”:

 

“Os Povos Novos da América são, também, o resultado de formas específicas de dominação étnica e de organização produtiva sob condições de extrema opressão social e deculturação compulsória, que, embora exercidas em outras épocas e em distintas áreas do mundo, alcançaram na América colonial a mais ampla e rigorosa aplicação.” [1]

 

Sem a compreensão dessa situação, é impossível colocarmos a idéia do “pluriverso brasileiro” em exame. Para destacar a posição única do Brasil dentro do conjunto dos Povos Novos, é preciso enumerar algumas diferenças fundamentais com relação aos demais povos da América do Sul: o afastamento contínuo da língua e da cultura espanhola e a adoção de uma certa heterogeneidade nacional com a adoção da língua portuguesa, a influência fortíssima, principalmente nas áreas litorâneas, dos elementos culturais africanos e falta de “unidade imperial”, se é que podemos falar nesses termos, dos indígenas que aqui viviam à época das primeiras explorações de colonização. É bem verdade que todos esse elementos de singularidade podem passar a falsa impressão de uma riquíssima e harmônica síntese de tendências que formou, por seu turno, uma totalidade homogênea. Nada mais falso. Embora o Brasil seja um país relativamente pacífico (não temos registros de guerras totais em território pátrio), os elementos supracitados sempre estiveram em choque nos costumes, nos modos de dizer, agir e pensar que se perpetuaram após a chegada dos navegantes europeus.

 

“O caráter de Povo-Novo da etnia nacional brasileira assenta-se na sua formação multicultural e multirracial em que representaram papéis decisivos, o negro e o indígena, além do europeu. Os processos de destribalização e deculturação destes contingentes para plasmar a etnia nacional operaram sob as compulsões da escravidão e, simultaneamente, com a miscigenação de uns com outros e todos com o português..”[2]

 

Darcy Ribeiro chama, de maneira mui acertada, essa configuração inicial do povo brasileiro de “protocélula”. A protocélula, no entanto, é também uma espécie de marca indelével de um determinado povo e atua como um espectro, uma Gestalt que não deixa de operar mesmo quando não é percebida.

Há, entretanto, um elemento cultural e civilizador que passou desapercebido para a maioria dos estudiosos da antropologia brasileira: a influência da cultura oriental no Brasil. Embora o assunto seja extenso e complexo- provar a tese da influência oriental no Brasil exigiria, por si só, um tratado completo- é possível recorrer ao relato apurado do sociólogo Gilberto Freyre. Freyre, como nenhum outro antes dele, percebeu nos costumes do povo, na arquitetura, na culinária e nos trajes, a onipresença do elemento extremo-oriental. Para ilustrar sua tese, o sociólogo chegou a chamar o Brasil de “China Tropical” e fez questão de ressaltar que também os orientalismos nos vieram, fundamentalmente, através dos lusos.

 

“A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns de seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e de exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em particular. E não só substância e cor à cultura: O Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós: os modos hierárquicos de viver o homem em família e sociedade. Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar”. [3]

 

Gilberto Freyre escreveu longas digressões tentando defender sua tese de que os modos de viver, trajar e transportar também moldam os modos de pensar; o fato é que sua teoria de um “Brasil Oriental” permanece pertinente.

Para que possamos compreender a pluralidade do Brasil é necessário termos em mente, portanto, a necessidade de uma abordagem específica que leve todas as matrizes culturais aqui citadas – africana, ameríndia, ibérica e extremo-oriental –  em conta. Além disso, temos que observar que as condições gerais dos povos novos, conforme observou Darcy Ribeiro, são únicas e inescapáveis. É desse modo, e somente através dele, que poderemos pensar no Brasil como um país pleno de possibilidades para um diálogo multipolar que vá além das falácias multiculturalistas e relativistas.

Reconhecer, estudar e especificar as linhas de força na formação brasileira são etapas naturais para qualquer sociólogo interessado no Brasil. Contudo, é necessário operarmos essa busca através de novos paradigmas e conceitos norteadores: é aqui que as noções de “pluriverso” e “espaço multipolar”  se fazem mandatórias.

 

 

 

[1] Ribeiro, Darcy. As Américas E a Civilização: Processo De Formação E Causas Do Desenvolvimento Desigual Dos Povos Americano. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

[2] Ribeiro, Darcy. As Américas E a Civilização: Processo De Formação E Causas Do Desenvolvimento Desigual Dos Povos Americano. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

[3] Freyre, Gilberto, and Edson Nery Da. Fonseca. China Tropical: E Outros Escritos Sobre a Influencia Do Oriente Na Cultura Luso-brasileira. Brasília: Editora Universidade De Brasília, 2003.

O Camaleão e o Matemático

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David Bowie is Pierre Boulez

 

2016 não tem sido um grande ano para a música. Depois da morte de Pierre Boulez, grande ícone da composição e da regência do século XX, agora foi a vez de David Bowie.

Embora as obras de Bowie e Boulez não guardem nenhuma semelhança estética, é interessante perceber que ambos foram artistas que conseguiram operar pequenas revoluções dentro de seus próprios universos estéticos: enquanto Boulez, o Matemático, incorporou a poesia hermética de Mallarmé ao seu repertório, renovou as montagens wagnerianas e reorganizou a chamada “música serialista”, Bowie, O Camaleão, praticamente inventou todas as tendências estéticas e culturais da música contemporânea, subverteu a lógica do mercado quando ela era imperativa, gravou com os geniais Fripp e Eno, inflou os próprios feitos ao promover shows enormes na Ásia e, atualmente, estava flertando com fontes jazzísticas e retornando ao modelo de estética do oculto que tanto o atraiu nos anos iniciais de carreira.

Há, ainda, outra semelhança fundamental na obra dos dois artistas:- a inventividade e o desejo constante de criar novos caminhos. Se Pierre Boulez percebeu a necessidade de recriar a obra, ou a regência, de acordo com o movimento de seu próprio intelecto e o interesse do público- posto que não via a estética musical como um universo autofágico- David Bowie decidiu que não era necessário defender apenas uma posição, cativar um único público ou mesmo seguir ditames de fidelidade impostos sabe-se lá por quem (é bem verdade que Bowie poderia ter se acomodado ao sucesso fácil de baladas dançantes como “Let’s Dance”, mas essa, definitivamente, não era a missão artística que o sensibilizava).

Há quem prefira ver um abismo total entre a música “erudita” e o, aparentemente, empobrecido rock and roll (nome que, aliás, não é adequado para quase nada do que David Bowie realizou). Contudo, essa fratura não é nada mais do que um fetiche, um recorte que só existe na mente de alguns intelectuais predispostos ao desentendimento. Afinal, o que existe é a Música.

A música, por sua vez, pode ser inventiva, instigante, promotora de aberturas estéticas e intelectuais.. ou pode ser monotonia, repetição de conceitos e banalidade.

Boulez, que inclusive conduziu o fabuloso concerto “The Perfect Stranger” de Frank Zappa, e Bowie conseguiram entender o que era a poderosa natureza da música e farão muito falta em um mundo cada vez mais empobrecido e achatado.

Que o Matemático e o Camaleão descansem em paz.

No ventre da baleia

Pretendo publicar aqui uma série de traduções livres do livro “No Ventre da Baleia”. O volume foi escrito pelo mestre hermético Federico Gonzalez e é uma pequena coletânea de aforismos e pensamentos sobre o processo da Grande Obra. Muitas vezes, os pensamentos estão disfarçados em linguagem urbana ou poética, mas todos eles contém a essência das diversas fases alquímicas.

Espero que façam bom proveito.

Dizem-me os Deuses que da radiante solidão do Centro extraiu-se essa amostra, aquilo que chamamos de mundo, para que o plano divino continue e assim se criem o espaço e o tempo dos homens.
Essa assombrosa precisão de cálculo não deve nos perturbar: ela é a engenhosa rotina da divindade, que às vezes também se cansa. O sonho dos astros é o caos dos homens. Venham e se regozijem neste sangrento festim! Tudo isso não é nada mais do que uma sucessão de truques, um jogo de imagens, o pesadelo da Divindade.

Os homens se reproduzem e se devoram, alternadamente, sempre muito confiantes: e os deuses não despertam de seu cochilo.

concworlds

A Pátria Educadora — Parte I: O projeto de Brasil de Mangabeira Unger

Brasil Multipolar

por André Luiz V.B.T. dos Reis

A presidente Dilma Rousseff pediu ao professor Roberto Mangabeira Unger que elaborasse um novo projeto para a educação brasileira. Missão dada, missão cumprida, foi publicado no início desse mês o documento ”Pátria Educadora: A qualificação do ensino básico como obra de construção nacional[1], que delineia os principais objetivos e medidas a serem tomados para mudar radicalmente o panorama da rede pública de ensino. A proposta se divide em três pontos principais, o primeiro e mais fundamental deles, aquele que vai orientar todos os demais, o estabelecimento de um ideário, de um projeto de nação que proporcione um norte para as políticas públicas.

Mangabeira Unger é um intelectual poderoso e original. Embora não faça reivindicações de pertencimento ideológico, seu pensamento se dedica a encontrar meios de impulsionar a modernidade progressista através da democratização cada vez maior da economia e da política…

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