A princípio escrevia simplesmente
Para entreter o espírito…. Escrevia
Mais por impulso de idiossincrasia
Do que por uma propulsão consciente.
Trecho de “Por que escrevo? “, de Augusto dos Anjos
Impulso, entretenimento – poetry had value as recreation rather than as revelation – consciência social… afinal, por que os poetas escrevem? Quando buscamos as explicações dos próprios artífices sobre o tema, percebemos que as falas são bastante imprecisas e fugidias. Não é como se eles simplesmente não soubessem a resposta para essa pergunta simples, mas o próprio questionamento, na medida em que exige uma dose indesejada de autoconsciência, parece estar deslocado do universo mesmo da composição. No entanto, essa dúvida – que pode, como todas as dúvidas, soar tola ou vazia de sentido – nos ajuda a descortinar as razões de ser do poema.
Quando criança, Rimbaud compôs diversos poemas latinos para cumprir atividades escolares. Ver Erat, a mais interessante dessas obras primeiras, narra a aventura de um jovem que tenta fugir do regime tutelar do estudo e se deita perto de um verdejante rio. De repente, é abatido por uma visão: Febo aparece e grava em letras flamejantes: TU SERÁS POETA. A cena imaginada pelo poeta francês tem dois detalhes interessantíssimos: guarda semelhança com a iluminação súbita de santos e místicos orientais e também antecipa a famosa Carta do Vidente que definirá o lugar transmutativo do poema na vida breve de Rimbaud: “a velharia poética entrava em boa parte na minha alquimia do verbo”.
Antes de partir para o exílio mais estranho da história da literatura, o jovem francês declarou ainda que o poeta verdadeiro é um ladrão de fogo e inscreveu a atividade poética naquela antiquíssima linhagem que tem em Prometeu seu patriarca. Qual seja a concepção final desse místico em estado selvagem que foi Rimbaud, a verdade é que o seu mutismo posterior nunca será explicado: cessou, afinal, a atividade divina? Ele perdeu o dom da vidência? Deixou de sonhar ou foi aniquilado pelo próprio fogo que havia raptado?
Ao menos simbolicamente, o gênio rimbaudiano previa que seu trabalho poético/profético cessaria envolto em uma bruma muito semelhante àquela que enredou o Rei Arthur; escreveu, então, o poema Barco Ébrio enquanto meditava em símbolos alquímicos e suas últimas palavras, segundo os biógrafos, foram: “me digam a que horas vão me levar para o navio”.
Partiu o vate da mobilidade máxima para a imobilidade absoluta e sua fuga nos indaga por que, afinal, escrevem os poetas. Longe da concepção sacra sobre o papel do poema, mora uma ideia de que a razão do poeta é o próprio trabalho. Daí os versos irônicos de Carlos Drummond de Andrade em Oficina Irritada:
Eu quero compor um soneto duro
Como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
Seco, abafado, difícil de ler.
Quero que meu soneto, no futuro,
Não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
Ao mesmo tempo saiba ser, não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
Há de pungir, há de fazer sofrer,
Tendão de vênus sob o pedicuro.
Ninguém o lembrará: tiro no muro,
Cão mijando no caos, enquanto arcturo,
Claro enigma, se deixa surpreender.
Em um poema inflamado, outro francês, Victor Hugo, usa uma dicção muito próxima daquela esboçada na Carta do Vidente: Peuples! Écoutez le poète! Ecoutez le rêveur sacré! Dans votre nuit, sans lui complète, Lui seul a le front éclairé (“Povos! Escutai o poeta! Escutai o sonhador sagrado! Na vossa noite, sem ele completa, ele apenas tem a iluminada fronte! ”).
Contudo, há nessas linhas um elemento ainda não pensado: a quem o soneto duro fará sofrer? Para quem está dirigida essa maquinação doentia operada na oficina? Drummond não diz, mas está subentendido: chamar o poema de tarefa, e não de destino ou vocação, é destituí-lo de seu caráter sagrado/mágico. Afinal, toda tarefa precisa de um encarregado, alguém que possa executar a função. Dessa condição surge o operário da palavra, o Bartleby lírico, e com ele o fardo da composição que opera em suas próprias nuvens semânticas: desgaste, suor, labuta, mecânica. Ao contrário da Todesfuge de Celan, o poema mecânico, quase sempre representado pelo poeta parnasiano fazendo malabarismos com o dicionário, é um mergulho na morte e na cisão. Eliot, mesmo tendo sido bancário e levado uma vida rotineira, optou por singrar outros universos com seu Waste Land: a rotina e o tédio estão no poema ou no próprio poeta que o executa? Por acaso já escreveram os operários?
A vocação, por outro lado, mistifica seus eleitos. Os autores videntes – Rimbaud, Blake, Nerval, etc. – se tornam os profetas de uma religião sem Deus e pairam na bruma de um segredo só comunicável sob certas cifras. Mallarmé escreveu pouco, mas seus alunos e admiradores diziam que havia algo naquele estranho professor que ficava sentado pelos cantos baforando e murmurando imprecações e desígnios pítios.
Há também o caso trágico de poetas que não foram considerados úteis o suficiente e que, portanto, não passavam de parasitas da pátria. O exemplo mais famoso é o do escritor russo Joseph Brodsky. Em 1963, um ainda jovem Brodsky foi levado ao tribunal para prestar alguns esclarecimentos sobre as suas estranhas atividades. Abaixo, transcrevo um pequeno trecho do delirante interrogatório:
Juiz: De modo geral, qual é a sua especialidade?
Brodsky: Eu sou poeta. Poeta-tradutor.
J.: Quem decidiu que o senhor era poeta? Quem o classificou entre os poetas?
B.: Ninguém. (Sem qualquer desafio) E quem me classificou no gênero humano?
J.: E o senhor estudou com tal objetivo?
B.: Qual objetivo?
J.: De se tornar poeta. Não tentou fazer os estudos superiores para se preparar… para aprender…
B.: Eu não pensava que seria possível aprender isso.
J.: Como se tornar poeta, então?
B.: Penso que… (Desconcertado) … é um dom de Deus…
Quando o público evacuava a sala, nós percebemos uma multidão, sobretudo jovens, nos corredores e escadas.
J.: Quanta gente! Não imaginei que haveria tamanho agrupamento.
Alguém na multidão: Não é todo dia que se julga um poeta.
E o que poderia dizer Brodsky diante de perguntas tão disparatadas? Objetivos, metas, como aprendeu? A oficina também tem os seus censores de prontidão.
Antônio Brasileiro, pintor e ensaísta, escreveu um pequeno livro dedicado a vasculhar a utilidade, ou inutilidade, última da poesia. Segundo ele, a investigação sobre as razões dos poetas encontra uma boa resposta no trabalho lírico e aforístico de Valéry. Sentenciando o poema como festa do intelecto, Paul Valéry, mesmo tendo sido discípulo de Mallarmé, reagirá contra as tendências mistificadoras e anunciará uma arte lírica intencional, medida e protegida contra a humilhação das musas. No entanto, as propostas valeryanas de intenção e trabalho estão muito distantes daquelas do operário. Para ele, a produção, o exercício e a investigação rigorosa são, em si, os fins do poema e as razões substanciais de seus executores:
“Mais uma vez confesso que o trabalho me interessa infinitamente mais que o produto do trabalho. Não amo senão o trabalho do trabalho: os começos me entendiam e suspeito ser perfectível tudo aquilo que chega de uma vez.”
Buscar, então, a motivação dos poetas em algo além da própria atividade de escrever é criar uma ontologia desnecessária? É edulcorar uma tarefa rigorosa que presenteia a observação de suas regras e engenhos? Fatalmente, o labor pelo labor desagua no discurso de Celan, em um momento de hesitação sobre o papel salvífico de sua arte, ao receber o prêmio George Büchner: a poesia, senhoras e senhores, esse discurso infinito, feito de pura mortalidade e inútil…
Mas se é apenas pela tautologia existencial e extensão de seus próprios domínios cognitivos, há ainda uma esperança de salvação – intelectual, anímica ou mental – pelo poema? Matilde Campilho anuncia que a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto, e isto, segundo ela, já é o suficiente.
Sendo este um exercício antes interrogativo do que peremptório, poderíamos estender a pergunta norteadora aos poetas mágicos, loucos, divinos, possuídos, incompreendidos, solitários ou engajados. Que fazem em um mundo nas raias da tecnocracia absoluta? Em quais poderes confiam para continuar a construir mundos e linguagens? Por que não desistem, de uma vez por todas, de seu ofício ou arte taciturna?
A sentença de Antônio Pina desembola, de maneira pouca esperançosa, a linha que iniciamos:
A Poesia Vai Acabar
A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –
REFERÊNCIAS
BRASILEIRO, Antônio. Da Inutilidade da Poesia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978.
RIMBAUD, Arthur. Prosa poética. Tradução: Ivo Barroso. 2ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.